Declarações amigáveis: as novas agências de encontros

Aquela papelada é feita para quem se quer conhecer por acidente! São pelo menos dois dias para preencher
As declarações amigáveis não são, de certezinha absoluta, pensadas para quem acabou de bater com o carro, ou de ser abalroado por um. Menos ainda quando o embate se dá no meio de uma fila do IC19 ou numa rotunda à hora de ponta, entre buzinadelas e insultos daqueles que têm pressa e pouca paciência para os erros dos outros.

Se nunca passou por isso, imagine o condutor a tremer dos pés à cabeça, como fica qualquer pessoa nestas circunstâncias – e estamos a falar de acidentes sem feridos -, que sai do carro para pedir desculpa ou para procurar entender o que aconteceu, e encontra pela frente outra pessoa no mesmo estado. Imagine que, civilizadamente, decidem que “estas coisas acontecem” e sacam da Declaração Europeia de Acidente, respirando fundo perante as instruções logo na folha de rosto, que recomendam calma e cortesia.

Já viu a cena? Então pode passar à fase seguinte. Chegam os carros à berma e o primeiro gesto é começarem a tirar fotografias com o telefone, com forte probabilidade de que o outro assuma o gesto como de desconfiança – “Olhe que os estragos não são os que se vêem, com a força que me bateu”, ameaça um, e o outro clique, clique, “Isto é só para vossemecê não me vir depois pedir que lhe arranje também aquela pancada que tem lá trás, ou julga que lhe saiu a sorte grande?” Pronto, se não começam ao murro, inicia-se o preenchimento propriamente dito, tendo como plataforma de trabalho o capô do carro. O tamanho da letra é o primeiro obstáculo, a ininteligibilidade dos termos deixa qualquer um estonteado e a quantidade de documentos necessários é tanta que em cima da “mesa” mais parece que vai começar uma partida da bisca (para a malta) ou de King (para os mais chiques).

Ui, e quando é preciso fazer um desenho? Quem confia nas habilidades artísticas do outro? E se de repente se percebe que a curva não é para a esquerda mas para a direita? Rasuram ou começam a preencher tudo de novo, e onde, se não houver mais declarações disponíveis?

E quando tudo está acabado, ou julgam que sim, e cada um guarda a sua folhinha, surpresa um, a cópia não se fez, e um deles tem uma declaração em branco, ou com uns riscos indecifráveis.

Se não se mataram até aí, já são de facto grandes amigos e, perante o choque de perceber que ainda há um verso da folha a preencher, não sobra outra solução senão combinarem encontrar-se no café mais próximo. Ou até mesmo num motel de estrada, porque para ficar mesmo bem preenchida, com uma letra bonita, é coisa para vários dias…

Afinal já vai ser tão difícil contar ao esposo que bateu com o carro, que o melhor é distraí-lo com a confissão de uma infidelidade. Talvez assim ele até não se importe com a porta metida dentro ou o guarda-lamas preso por um fio. E daí… essa pode ser a terceira surpresa.

Nota (já que usar o PS neste momento é particularmente dúbio): Este artigo é muito sério e pretende ser-lhe útil. Conselho número um: tenha mais de uma declaração amigável no carro. Número dois: ande com uma declaração com os seus dados já preenchidos. Número três: use uma esferográfica e não pontas de feltro. Número quatro: tenha sempre uns óculos de ver ao perto no porta-luvas. Número cinco: diz a DECO que à falta de declaração oficial pode escrever numa folha em branco como ocorreu o acidente e os danos que resultaram, além dos dados dos outros condutores, matrículas e número das apólices do seguro, que deve ser assinada pelos intervenientes.

Jornalista

Escreve ao sábado
Por Isabel Stilwell
publicado em 20 Set 2014

http://www.ionline.pt/iopiniao/declaracoes-amigaveis-novas-agencias-encontros/pag/-1

Actualizado a 29 / 09 / 2014